FLÁVIA METZLER: VAZIOS ELOQUENTES
Marcelo Campos
Podemos observar um espaço vazio qualquer e fazer dele um espaço pictórico. Não se trata do vazio declarado pela pintura planar, aquela que prescindia a representação, mas, antes, a outra, a que se dedicava às regras da perspectiva. “Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma ação teatral” 1. As pinturas de Flávia Metzler acontecem entre estes dois espaços, o da ação pictórica e o da ação teatral.
Os ambientes aos quais a artista dedica à ação teatral são, muitas vezes, perspectivados. Mas, não são plenamente reconhecíveis. Trata-se de reconhecer lugares em liminaridades, espaços intervalares, como um foyer, o patamar das escadas, o proscênio. Com isso, as pinturas de Flávia optam por não nos apresentar cenas principais, dedicando-se a cantos, quinas, ângulos em ambientes onde a arquitetura apresenta-se como sustentação para ornamentos. Assim, nos remetemos à entrada de templos, aos corredores de palácios, à coxia dos teatros. Vemos frisos ornados com guirlandas, símbolos, inscrições em relevo. E qual seria, então, o centro da representação?
Na mais recente produção de Metzler, a pintura se dedica a observar o espaço profundo, tão profundo que, muitas vezes, torna-se planar, como o céu, o cosmos, o fundo do mar. Mas o deep da paleta escolhida nos afasta do grau zero da representação, colocando-nos em mergulhos, em ultramar, ou em negros firmamentos. As imagens resultantes são quimeras, seres formados por diversas partes, metamorfoseados. Em outras situações, ainda que imaginemos seres constituídos de partes de outros seres, o fato é verossímil. Bichos aquáticos inimagináveis, por exemplo, são trazidos à luz, tarefa da pintura, como nos informara Matisse. Assim, a representação torna possível a visualidade daqueles que vivem no escuro do mundo.
Na compreensão do lugar para o qual a pintura aponta, Flávia Metzler lança-nos pistas, como nas imagens em que simula cortes na terra, aos quais denomina seção geológica. Um sentido sobrevém: a pintura trata de lugares e prospecções, como na estratigrafia da restauração. Por isso, não estamos somente diante do espaço pictórico domesticado, aquele que cabia em cavaletes, como dito anteriormente, mas, antes, a pintura se relaciona com a arquitetura. E a artista ressalta tais planaridades que se apresentam nos relevos laterais, como se corresse seus pincéis por amplas paredes, dedicando-se a cenas, personagens, que parecem saídos de camafeus e joias. Tais imagens, originalmente dedicadas aos deuses, como amuletos, depois foram reapropriadas como broches femininos. E neste sentido, uma possibilidade de domesticação acompanhara o consumo capitalista, popularizando-as em oratórios, bijuterias, molduras em rocalle, porta-retratos. São estas as possíveis associações, já que a imagem antes pública, ornando paredes e altares, agora se recolhera aos recônditos da casa ou ao colo das moças.
De certa forma, tudo, na pintura de Metzler, se abstrai pela ênfase no efeito, tal qual o ornamento de Klimt. Com isso, Flávia Metzler exercita um certo deslocamento entre tempo e afetação. “Os gestos nobres”, dirá Peter Brook sobre o teatro, “e os valores aristocráticos estão a desaparecer cada vez mais depressa da vida quotidiana e as novas gerações acham o estilo eloquente cada vez mais vazio e desprovido de sentido”.
A pintura de Flávia Metzler trata do vazio dos gestos eloquentes. Na própria atitude da artista diante do labor pictórico, vemos a tinta ser usada como relevo, suplantando a aderência ao
linho. Uma eloquência de gesto. Ao mesmo tempo, o deslocamento geográfico está presente na representação de cenas orientais, com camponeses e cortesãs, ou nas volutas palacianas. E a condição matérica brilha, doura, cintila, como se coadunássemos os vazios de Kuitca e Hopper ao elemento natural coletado de Kiefer e Penone.
Na produção recente, Metzler se dedica ao espaço cosmológico. Há certa vontade de tratar da representação de mundos, deste e de outros, desconhecidos. Assim, a artista se aproxima das páginas das iluminuras, mapas, cartas náuticas, mantendo como condição protagonista, a eloqüência do vazio.
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1 Brook, Peter. O espaço vazio. Lisboa: Orfeu negro, 2011.