OS 39 DEGRAUS
Guilherme Bueno
Face a uma porta que se abre para uma paisagem inexplicável, passos congelados, uma escadaria cujo destino é incerto. Um homem – familiar a nós – dependurado em um cenário noturno. Cenas compostas por um imaginário que evoca referências tão díspares quanto o cinema, a pintura surrealista. No entanto, nada disso ajuda-nos a entrar nestas telas. De fato, aqui reside seu enigma: podemos dissecar os personagens que as povoam, enxergar paralelos por meio da memória de nossa cultura visual; ainda assim falta-nos algo. E assim permaneceremos dando voltas, buscando indefinidamente a chave que faz estas figuras tão próximas, tão distantes. A colagem de citações provoca o descolamento de sentidos.
A pintura de Flávia Metzler nos fala continuamente de uma barreira inconsútil, nascida subterraneamente, do escrúpulo com que os protagonistas e o ambiente destas telas é apresentado. Trata-se do muro da narrativa. Algo se passa ali – chega às raias do evidente. E nesta contradição, no desencontro entre aquilo visualmente claro e aquilo legivelmente obscuro transcorre o estado de incerteza do espectador. Ele é obrigado a se posicionar numa situação de negatividade, de incerteza, isto é, se o quadro abre uma fissura no seu significado interno, não outorga docilmente ao espectador a autoridade de decifrá-la ou emprestar-lhe uma lógica unívoca. Sobretudo quando seus textos se mesclam de maneira tão pessoal quanto o entrecruzamento de Luís XIV com Harold Lloyd, um encontro digno de (...)
Uma pista do fio condutor reside, contudo, na própria pintura – na luz que organiza e comenta o espaço de cada um dos ambientes e, em certos momentos, literalmente os sustem. Mas haveria algo mais tênue e volúvel do que ela, que ora é pálida, em outros encarnada e sólida como paredes, e por vezes fugidia. Provavelmente ela é uma boa metáfora para as histórias que se passam diante de nossos olhos e deles escapam. Um tempo congelado e em movimento, o tempo coligido em seu auto-paradoxo. Como no cinema. Como na pintura.