SOB AS PÁLPEBRAS, EM MINHAS RETINAS SATURADAS LATEJAM IMAGENS
Fernando Gerheim
O globo ocular é um ser mitológico de duas cabeças, uma por fora e outra por dentro, uma porta-giratória fazendo a passagem entre o interior e o exterior. É como a linha orgânica entre eu e o mundo, dobradiça, pele ainda mais fina sob a pálpebra. E as imagens são o seu suor, sua saliva, a ressumação de suas glândulas, o êxtase e o âmago do olhar.
O trânsito que circula em “Uma só ideia impregna a imensidão” (aforismo do poeta e pintor de visões William Blake), é entre a pintura e elementos decorativos da arquitetura palaciana barroca (a inspiração vem do palácio Amalienburg, locação do filme “Ano passado em Marienbad”), mas, em sentido mais amplo, o trânsito é entre a pintura, seu suporte e a arquitetura; e, de outro lado, entre a imagem e o discurso que cifra uma história (uma das histórias é a da arte).
Da composição do ambiente para os personagens (procedimento de narrativa de ficção?), elementos de arquitetura como frisos, volutas barrocas e outros passam a ser o suporte dos quadros, como se o pincel, criador de existência pictórica, avançasse sobre o real, trazendo-o para a ficção, e deixando-a, por sua vez, passar para o lado de lá. Flavia Metzler cria um efeito de mise-en-abyme entre essas duas instâncias.
Os quadros “A velha”, “A jovem (cabeça de cachorro)”, “A moça, a pintura” e “Os olhos de fogo” são ao mesmo tempo frisos, porta (o quadro é uma porta com dois quadros), o detalhe barroco no alto da parede. Porém onde deveria haver anjos e símbolos celestiais em relevo, nadam peixes esquisitos de águas profundas. Tudo pode surgir ao lado de tudo na superfície do quadro, como no fundo do olho ou no percurso de um hipertexto.
A fronteira da pintura é também o objeto: a esfera (quase do tamanho de uma bola de boliche) representa o globo ocular tridimensional, e o título alude (com humor negro), a um outro olho onipresente: “Espião”. Sugestionado pelo clima intimista fantástico dessa ARQUIPINTETURA, é o espectador que narra, na medida em que liga as diferentes partes com o olhar. Como o globo ocular, o trabalho é essa porta-giratória em que o mundo gira para dentro e o corpo e a mente para fora.